O Sonho
O Congresso

A diferença absoluta do sonho

Angelina Harari

Angelina Harari

“Mesmo assim tenho o direito, tal como Freud, de participar-lhes meus sonhos. Contrariamente aos de Freud, eles não são inspirados pelo desejo de dormir. É sobretudo o desejo de acordar que me agita. Mas, enfim, é particular”.[1]: esta afirmação de Lacan é a epígrafe do argumento do XII Congresso da Associação mundial de psicanálise (AMP)[2]. Será meu ponto de partida para falar do tema: “O sonho. Sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano”.

O desejo de dormir, ou o desejo de despertar, são dois eixos de trabalho a levar em conta. Trata-se de um retorno a Freud? Sim! Não que a psicanálise tenha novamente se desviado de seu caminho, como quando Lacan, ao escrever seu “Ato de fundação”, entendia retornar a Freud para restaurar seu fio cortante. Retorno a Freud, sim, mas para melhor nos orientar a partir de um ponto de vista propriamente lacaniano, a partir da orientação lacaniana.

Dizer que o sonho é interpretável, tal foi a grande descoberta freudiana, o passo fundador, inaudito, quando se pensa nisto, realizado por Freud em direção ao inconsciente. Em nosso retorno às origens da invenção da psicanálise, trata-se, antes de mais nada, de considerar a especificidade do tratamento lacaniano, da direção do tratamento hoje em relação ao sonho, a fim de colocá-la a céu aberto. Ao escolher o tema do sonho, nosso Congresso visa, portanto, ao cerne de nossa prática.

Em “Momento de concluir”, Lacan destaca que “passamos nosso tempo a sonhar, não sonhamos apenas quando dormimos”[3]. O sonho-despertar deve, portanto, ser diferenciado de um passar seu tempo a sonhar, diferente também de um tudo não passa do sonho freudiano, ou seja, do sonho como aquele que protege do despertar. Lacan foi levado a concluir que “todo mundo é louco, ou seja, delirante”[4]. Ele acrescenta que o inconsciente “é exatamente a hipótese de que não sonhamos apenas quando dormimos”[5]. Portanto, não se trata apenas de destacar o desejo de despertar em detrimento do sonho guardião do desejo de dormir.

No a posteriori do Ano Zero do Campo Freudiano, iniciado por Jacques-Alain Miller, o próximo Congresso da AMP escolheu como eixo o tratamento lacaniano pela vertente do sonho – no singular. A interpretação é um meio seguro de considerar o sonho. O sonho interpreta prevalece sobre o sonho interpretado pelo analista no tratamento lacaniano[6]. Interessa-nos, portanto, especialmente o uso do sonho que diz respeito ao tratamento lacaniano visto de perto.

Que se trate do sonho-intérprete, do sonho interpretado ou de seu umbigo, o domínio do ser provém de um impossível. Para Freud, “o núcleo de nosso ser se situa no âmbito do desejo inconsciente, e esse desejo não pode jamais ser dominado ou anulado; pode apenas ser dirigido. É o que buscava Lacan ao pensar sua prática em “Direção do tratamento...”[7]. O que guia nossa prática em relação aos sonhos nos tratamentos que dirigimos?

Colocar o acento no uso do sonho, é desenhar outra via para considerá-lo na direção do tratamento, uma via menos centrada no discurso do Outro, “desembaraçada das escórias herdadas do discurso do Outro”[8]. É um estudo do sonho que não passa pelo deciframento e que nos leva em direção ao furo que Lacan extrai em seu último ensino. Jacques-Alain Miller destaca que a renúncia à ontologia conduziu Lacan da falta-a-ser ao furo; ele ultrapassou os limites dessa ontologia quando proferiu seu Há-Um, que não é da ordem da falta, nem do ser.

Esse caminho parece essencial para pensar os sonhos conclusivos. Ocorre que os passantes relatam muitas vezes um sonho conclusivo[9], que instaura um corte em relação ao material antigo. Isto se observa nos sonhos relatados por aqueles que foram nomeados AE, Analistas da Escola. Ora, no passe não se trata de falar de um “para todos”. “A verdade do passe fornece a chave da deflação do desejo, a saber, que o desejo nunca deixou de ser desejo do Outro”[10]. Os AE também terão um lugar importante em nosso próximo Congresso.

No Seminário 23, Lacan evidencia o termo uso[11]. O uso, o valor de uso do sonho, eis o que nos coloca no caminho de pensar nossa prática a partir do que o sinthoma do Um comporta de absoluto, a partir da diferença absoluta do Um: devemos aqui operar um leve deslocamento no ensino de Lacan em relação ao que ele nomeava como diferença absoluta do desejo do analista no Seminário 11[12]. A psicanálise poderia então ser definida como a via de acesso à consistência absolutamente singular do sinthoma, ao saber-se-haver (savoir y faire) com seu sinthoma, acerca do qual Lacan indica que “está ali o final da análise”[13]. A esse respeito, J.-A Miller sublinha dois termos de Lacan no Seminário 24 a respeito do sinthoma: “saber desembaraçá-lo, [saber] manipulá-lo”, em que a expressão “saber manipulá-lo” indica que “o corpo está na jogada”. Nesse nível, isto não é dito nem decifrado, pois o sinthoma, considerado como o que se tem de mais singular, é “indecifrável”[14].

Com a diferença absoluta do Um como horizonte, nosso desafio maior será mostrar como intervimos, em nossa prática lacaniana de hoje, com relação ao sonho.

Tanto para dizer-lhes que a prática será matéria essencial deste Congresso, a prática exposta sendo um vetor essencial de garantia para a formação dos analistas na AMP.

Tradução : Teresinha N. Meirelles do Prado.

NOTAS

  1. Lacan, J. “A Terceira”, Opção Lacaniana, n° 62, dezembro-2011, p. 25.
  2. XII Congresso da AMP « O sonho. Sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano », Buenos Aires, 13-17 de abril de 2020, informações e inscrições aqui: https://congresoamp2020.com/pt/
  3. Lacan, J. « Une pratique de bavardage », Ornicar ?, nº 19, 1979, p. 5.
  4. Lacan, J. « Journal d’Ornicar ? », Ornicar ?, n° 17/18, 1979, p. 278.
  5. Lacan, J. « Une pratique de bavardage », op. cit.
  6. Brousse, M.-H. Apresentação no evento « Une soirée de rêve. Vers le XIIe congrès de l’AMP », organizado pela AMP na ECF, em Paris, 28 de janeiro de 2019. Inédito.
  7. Miller, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana: “Um-sozinho”, aula de 11 de maio de 2011, inédito.
  8. Miller, J.-A. « En deçà de l’inconscient », La Cause du désir, n° 91, novembre 2015, p. 103.
  9. Cf. relatório de um cartel de passe da ECF: « Relatório conclusivo do cartel A9», redigido por Cottet, S. Opção Lacaniana, nº 60, setembro-2011, p.74. Esse número informa sobre o procedimento do passe nas Escolas da AMP, os testemunhos dos « passantes » e a nomeação dos AE.
  10. Miller, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana: “Um-sozinho”, op. cit.
  11. Cf. primeiro capítulo, intitulado por J.-A. Miller “O uso lógico do sinthoma”.
  12. Lacan, J. O Seminário: livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, texto estabelecido por J.-A. Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 260.
  13. Lacan, J. « Séminaire XXIV ». Ornicar ?, nº 12/13, 1977, p. 6.
  14. Miller, J.-A., « En deçà de l’inconscient », op. cit., p. 103.